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Entrevista a Rocha Peixoto

Por Madalena Amaro e Rosa Guedes, do jornal escolar PANORAMA

E (Entrevistadoras) – Muito boa-tarde, senhor Rocha Peixoto. Esta plateia, tal como nós, está curiosa por saber alguns pormenores da sua infância. Que nos pode contar dela?

R.P (Rocha Peixoto) – Bem. Eu sou filho do cirurgião miguelista, António Luís da Rocha Peixoto, natural de Arcos de Valdevez. Minha mãe, Constança Amélia Pereira da Costa Flores, natural de Vila do Conde, teve doze filhos, mas, apenas sobrevivemos seis.

E – Mas consta que seu pai foi também militar?

RP – Assim é. O meu pai serviu o Exército Miguelista.

E – Onde residiam?

RP – Na Póvoa de Varzim, porque o meu pai veio trabalhar para o hospital da Misericórdia. Foi aqui que eu nasci a 18 de Maio de 1866, tal como todos os meus irmãos. Meu pai exerceu Medicina numa época em que um grave surto de cólera atingiu Portugal. Infelizmente, fiquei órfão de pai aos oito anos de idade. Foi uma perda muito grave que se repercutiu bastante na situação económica da nossa família, exigindo de todos, um esforço de gestão e de poupança tamanhos.

E – Que nos pode contar da sua vida escolar?

RP – Eu estudei no Colégio da Nossa Senhora do Rosário, no Porto. Fiz a minha formação na antiga Academia Politécnica do Porto, sita na Quinta do Pinheiro, onde conheci o Ricardo Severo, o Fonseca Cardoso com quem formei um grupo muito unido e interessante.

E – Recorda-se de algum momento especial vivido com esse grupo?

RP – Como todos jovens, de 18-19 anos, também, nós nos divertíamos muito. Tínhamos um ritual, julgo que era duas vezes por mês, reuníamo-nos numa noitada chamada “ ceia das alheiras”, em que comíamos umas deliciosas alheiras de Chaves e , no fim desse manjar, poetávamos, tocávamos...  

E – Concretamente, que instrumento?

R.P – Sem falsa modéstia, dizem que eu e o Fonseca Cardoso, éramos exímios guitarristas. Até me atribuem a composição da valsa a “ Lavandisca” mas isso, era brincadeira deles... Mas, claro, as nossas reuniões eram, sobretudo, acesos debates de ideias literárias, políticas e científicas, onde, por vezes, eu até exibia a minha colecção de minerais.

E – Eram assim tão produtivas essas reuniões?

RP – Sem sombra de dúvida! Eu, o Xavier Pinheiro, o João Barreira, o Severo e o Cardoso fundámos em 1887, a Sociedade Carlos Ribeiro, cujo órgão era a “REVISTA DE CIÊNCIAS NATURAIS E SOCIAIS”, da qual publicámos, cinco volumes compostos por vinte fascículos. Posteriormente, quando o Hamilton Araújo se juntou a nós, a investigação e discussão eram tais que decidimos substituir a primeira revista por uma outra já mais completa e variada: a revista antropológica “ PORTUGÁLIA” cujo primeiro tomo incluiu quatro fascículos.

E – Soubemos que trocou correspondência com Augusto Nobre, irmão do poeta António Nobre…

RP – Assim foi. Um dia, convidei -o para vir a minha casa para conversarmos sobre questões científicas. Eu precisava da sua ajuda para classificar umas conchas e, ainda, para me indicar uns livros que me ajudassem na investigação da conchiologia, pela qual me interessava bastante.

E – O Augusto Nobre era seu colega?

RP – Não. O Augusto estudava em Coimbra. O seu irmão António Nobre é que fazia parte do nosso grupo. Até o convidamos para ele ser redactor da “Revista de Ciências Naturais e Sociais”. Só que, como bem sabem, o Nobre era mais poeta!!!

E – Os seus amigos retratavam-no como um homem possuir de um físico trivial, senhor de um olhar vivo e penetrante e que quando falava revelava uma inteligência aguda e uma sensibilidade rara. Teve muitos amores?

RP – Os meus amores foram a família, a ciência e a pátria.

E – É natural para quem se interessou tanto por lanternas, cata-ventos, filigranas, castros, conchas, que tivesse pouco tempo disponível para amar... (risos). Mas, é sabido que tinha um feitiozinho difícil...

RP – É verdade! Os meus colegas de trabalho achavam-me um polemista intrépido, com um temperamento irrequieto e uma mente aberta ao mundo. Em suma, um homem moderno para o meu tempo. Confesso, porém, que, nas discussões mais acesas, eu encolerizava-me e, por vezes, saíam-me, assim, umas palavritas com uns ressaibos populares. 

E – Afinal, de contas, qual é a sua formação?

RP – Sou, essencialmente, um autodidacta, um curioso insaciável. Além disso, frequentei a Academia Politécnica do Porto até ao 4ºano que não concluí dadas as minhas inúmeras dificuldades económicas, pois o meu tio Major Romão Costa Flores que me custeava os estudos, entretanto, falecera. Porém, os estudos académicos que eu até ali realizara com êxito permitiram-me obter o Diploma de Académico da Classe de Ciências Matemáticas, Físicas e Naturais.

E – Consta que recebeu um louvor da Academia Politécnica do Porto. Fale-nos um pouco disso?

RP – Em 1890, o Professor Manuel Amândio Gonçalves, propôs que a Academia me concedesse um voto de louvor pelos meus bons serviços prestados na escolha e acondicionamento de uma colecção de minerais e fósseis que tinha sido oferecida ao Gabinete de Mineralogia e Geologia da Academia.

E – Então, após a perda do apoio económico do seu tio, como ultrapassou as suas dificuldades económicas?

RP – Na verdade, foram tempos difíceis e a família a meu cargo numerosa. Mas eu, nunca baixei os braços. Certa ocasião, até publiquei um livro escolar Compêndio de Geografia para o secundário, para fazer face à escassez de dinheiro. 

E – Que funções e cargos exerceu ao longo da sua vida?

RP – Trabalhei como 1º oficial da 1ª repartição, na Câmara Municipal do Porto. Durante outros seis anos, fui bibliotecário do Ateneu Comercial do Porto. Mais tarde, durante nove anos, fui bibliotecário da Real Biblioteca Pública Municipal do Porto. Convidado pela Academia Politécnica do Porto, exerci o cargo de naturalista -adjunto, para a secção de Mineralogia. E, leccionei na Escola Industrial Infante D. Henrique. Exerci os últimos quatro cargos em simultâneo. Trabalhei muitíssimo!

E – Como um negro, diríamos nós. E, como conseguia tempo para isso tudo?

RP – Sabem, eu sempre fui muito organizado por isso, conseguia tempo para estudar, pesquisar, ensinar, conviver, dedicar-me à família e aos amigos, e, até, saborear a tranquilidade do jardim da minha casa de Matosinhos…

E – Geografia, minerais... afinal, que áreas investigou?

RP – Comecei a interessar-me pelas Ciências Naturais. A seguir, pela malacologia, uma ciência deslumbrante que estuda os moluscos. Posteriormente, pela antropologia, pela epigrafia que me permitiu entender o conteúdo das inscrições dos monumentos antigos. Depois, pela arqueologia e etnografia e etnologia. Como vê, áreas que se interligam, pois tudo o que se relacionasse com história e cultura dos povos me fascinava.

E – Então, e a Museologia?

RP – Obviamente, uma outra área apaixonante. Eu fui director do Museu do Porto. Nessa função organizei a secção arqueológica com materiais das cividades de Laúndos, Terroso e Guifões. Criei, ainda, a secção epigráfica, reuni uma colecção de cerâmica nacional bem como outros elementos etnográficos do Norte do país. Enriqueci o espólio do museu, com diversa pintura portuguesa, cerâmicas, cristais, mobiliário artístico e tradicional, muitos deles, adquiridos em vários leilões. 

E – O senhor nunca fez férias?

RP – Sabem, eu não tinha muito tempo para descansar. Talvez por isso, a doença me tomasse tão cedo. Mas, normalmente, lá pelo mês de Setembro, apreciava ir até à Póvoa ou a Moreira da Maia visitar o meu velho amigo Ricardo Severo.

E – Diz-se que os vila-condenses se zangaram consigo?

RP – Isso, foi um mal entendido. O bairrismo exacerbado fez polémica sobre o caso do Mosteiro de Santa Clara. A minha intenção era salvaguardar o espólio... talvez, eu não tenha sido compreendido. Quatro anos mais tarde, veio a controvérsia sobre o nascimento do Eça de Queirós. Como bem se recordam, a Câmara da Póvoa encomendou-me uma pesquisa sobre o local de nascimento do Eça. Depois de séria investigação, eu defendi que o nosso grande romancista era poveiro, baptizado em Vila do Conde... Caiu o Carmo e a Trindade! Sabem que até pregaram escritos nas portas das casas da Vila enxovalhando o meu nome?! Todavia, diz-se, que uma embaixada bem representativa de vila-condenses esteve presente no meu funeral. E de facto, lá do outro lado da morte, eu vi que tanto os poveiros como os vila-condenses respeitaram e admiraram o meu trabalho.

E – Alguns dos seus amigos afirmam que foi vítima de uma tuberculose fulminante...

RP – Assim foi. Faltavam somente 16 dias para completar os meus 43 anos, justamente quando eu colhia os frutos do meu trabalho intenso e profícuo, e quando, finalmente, me era reconhecido o meu empenho e valor enquanto estudioso, essa doença fatal, em apenas dois meses, ceifou-me a vida. Na realidade, eu morri com duas mágoas: a de não completar um livro ao qual chamaria “A Serra” e a de não deixar acabado o Museu Municipal.

E – Impressionante! E que balanço fez da sua vida?

RP – Uma vida intensa, cheia e inacabada. Mas, como investigador, acredito que isto é uma bênção.

E – Por que diz isso?

RP – Porque a ciência é aberta, dinâmica, infinita.

 

Bibliografia :

GONÇALVES, Flávio – Rocha Peixoto (Depoimentos e Manuscritos). Matosinhos: Câmara Municipal, 1966.

GONÇALVES, Flávio – Rocha Peixoto, nas vésperas do centenário do seu nascimento. Póvoa de Varzim Boletim Cultural. Póvoa de Varzim: Câmara Municipal, Vol. 4 (1965).


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