Falar dos Baptista de Lima é, desde logo, falar de papéis. Para tudo: embalagens, jornais, revistas, livros. Do vulgar produto comercial à requintada criação artística. E tudo isto desde há um século – fá-lo exactamente neste ano da graça de 2008.
Os Baptista de Lima são, portanto, nestas 4 gerações de convívio com o cheiro a tinta, testemunhas privilegiadas da evolução técnica de uma arte que, nos últimos anos, tem sido galopante: da velhinha composição manual, com os minúsculos tipos a serem ordenados, letra a letra, para constituírem as palavras que dão sentido a uma história, até à actual composição electrónica que quase elimina o tempo de produção e praticamente dispensa o contacto (táctil e afectuoso) do tipógrafo – de toda esta evolução os Baptista de Lima são agentes e testemunhas, na centenária itinerância do projecto empresarial que, em 1908, o vilacondense João Baptista de Lima iniciou na Praça Marquês de Pombal, de onde se mudou, sucessivamente, para a Avenida Mouzinho de Albuquerque, a Rua da Junqueira, a Rua José Malgueira e a Rua Agostinho Landolt, onde está sediada desde 1974.
A “Camões” – como é comummente (e carinhosamente) conhecida entre nós – é, além de empenhada depositária de importante quinhão da memória cultural da cidade, uma prestigiada referência da Póvoa de Varzim, porque associada à produção de marcantes projectos editoriais, por encomenda das melhores instituições culturais do país.
Esta associação da “Camões” aos livros é, podemos dizê-lo, umbilical, tão presente na génese da sua criação, não fosse o fundador, além de tipógrafo, um activo e militante publicista (fundador, director e correspondente de jornais) e investigador da história local, que divulgou através de publicações por si mesmo editadas, entre 1927 e 1963 (ano da sua morte).
Atentos ao mercado e empreendedores, os Baptista de Lima ramificaram a actividade, gerando outros projectos empresariais no ramo tipográfico. Mas a velha e matricial “Camões” lá permanece, firme, desafiando o tempo que passa e caminhando com ele, pela mão persistente de António Baptista de Lima – que, como os irmãos, nasceu, cresceu e vive no meio do cheiro a tinta, das máquinas (quantas, modernas na sua época, são hoje peças de museu…), dos papéis diversos…
O mundo de António Baptista de Lima é, pois, o privilegiado reino do primeiro contacto e da construção de produtos culturais que nós, leitores, apenas conhecemos quando prontos e expostos à nossa contemplação curiosa.
Deve ser particularmente feliz a vida de quem, gostando de livros, participa na sua criação, dando-lhe um toque pessoal. Porque os livros são mais que o labor intelectual do seu autor – são também educados pela atenção e pelo caminho de quem os compõe, imprime, encaderna, embala… E tudo isto sente-se, ao ler.
O Presidente da Câmara Municipal José Macedo Vieira
UM TIPÓGRAFO QUE AMA OS LIVROS
O ciclo “Vidas com Livros” foi inaugurado em 2007 com uma exposição dedicada à carreira do livreiro Domingos Lima na mítica Livraria Lello. Nesta exposição apresenta-se agora deliberadamente uma profissão e um percurso de vida diferentes, pois apesar de intimamente ligada aos livros e à escrita, a profissão de tipógrafo é desconhecida quanto às exigências técnicas e artísticas que convoca.
Apresentar um tipógrafo poveiro com um percurso de vida directamente ligado aos livros levou-nos incontornavelmente à Tipografia Camões e ao seu actual proprietário, ambos parte integrante da história da Póvoa de Varzim do século XX e, em particular, da história das artes gráficas e da edição.
A Tipografia Camões comemora 100 anos de actividade no próximo dia 10 de Junho e foi fundada por João Baptista de Lima (1887-1963), um tipógrafo amante da história local, jornalista, bibliófilo, que trabalhou a biblioteca municipal durante algum tempo. António Baptista de Lima, neto mais novo do fundador, nasceu na tipografia, onde o seu pai e os irmãos mais velhos já trabalhavam. Logo, cresceu entre papéis, tipos e máquinas de impressão.
Por isso, conceber a exposição documental “António Baptista de Lima e a Tipografia Camões” em torno dos universos profissional, familiar, empresarial e mesmo cultural, do tipógrafo que imprime o Boletim Cultural “Póvoa de Varzim”, tornou-se um desafio estimulante para a pequena equipa que constrói as exposições do ciclo “Vidas com livros”.
Sobre este projecto expositivo, importa referir que não procura somente recriar a biografia do António. Não se pretendeu apenas propor um olhar sobre o passado em si mesmo, mas sim estimular o visitante a descobrir que memória fica dos tempos e dos espaços agora evocados e recriados.
A recolha de documentação que está subjacente a este trabalho permitiu a descoberta de fotografias raras, que contextualizam a adolescência do António e documentam as actividades da Cruzada Eucarística da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, que António integrou. Por sua vez, os testemunhos vídeo apresentam evocações impressivas de familiares, a par de testemunhos de clientes, fornecedores, autores e editores.
A abertura desta exposição apresenta uma novidade, porque se articula com o centenário da Tipografia Camões. No dia 9, António Baptista de Lima guia uma visita pública ao espólio tipográfico da empresa, seguindo-se o lançamento da obra “Póvoa de Varzim: monografia e materiais para a sua história”, que integra dois títulos de João Baptista de Lima há muito esgotados e que são editados em versão fac-similada na colecção municipal “Na linha do Horizonte – Biblioteca Poveira”, com um estudo inédito do Prof. Doutor João Francisco Marques sobre o fundador da tipografia.
Porque a Biblioteca Municipal foi acolhendo diversas máquinas tipográficas por iniciativa do saudoso Manuel Lopes, esta exposição é também uma homenagem ao projecto “escrita poveira”, que lançou nos anos oitenta, com as escolas, para promover o património escrito local, a que se segui a criação de uma biblioteca digital dos periódicos poveiros nesta Biblioteca.
António Baptista de Lima gosta de se apresentar como sendo uma pessoa simples, frontal e dedicado ao trabalho, mas quem o conhece como tipógrafo sabe que ele tem outra qualidade: vive nele a alma de um artista. Na composição, na impressão e no acabamento de cada página, o tipógrafo procura o belo, sonhando sempre com a realização da obra perfeita. Esse é o ambiente no qual qualquer autor ou editor mergulha quando frequenta a tipografia, tendo de aprender a lidar com a impaciência do tipógrafo para “fechar” o trabalho e, ao mesmo tempo, as suas inúmeras tentativas para extrair do prelo um produto graficamente perfeito.
António Baptista de Lima está de parabéns pelos cem anos da sua tipografia e pela paixão colocada em cada livro que imprimiu. A equipa da Tipografia Camões também está de parabéns por saberem ser tradicionais e inovadores na relação com o Livro. Infelizmente, a era do digital já sentenciou o desaparecimento da profissão de tipógrafo tal como existiu desde a invenção do prelo. Que a preservação do património documental subjacente a este ciclo de exposições permita resgatar a memória dos tipógrafos e das artes gráficas agora apresentados aos visitantes desta exposição.