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| | texto de M. Gomes da Torre De menino cábula a respeitado intelectual
Fazendo fé no que repetidamente nos conta, enquanto criança, Francisco Gomes de Amorim distinguia-se dos seus colegas por “uma superioridade incontestável, nos exercícios arqueológicos de atirar à funda, apanhar pássaros a laço, e, visto que é preciso confessar tudo, em achar pretextos plausíveis para não dar lição sempre que isso me competia” (Cantos Matutinos, p.iii). O resultado de tais habilidades foi que, tendo entrado na escola aos cinco anos e saído quase aos dez, a abandonou “sem saber assinar o meu nome, ou soletrar duas palavras”. (id. ib.)
Apesar disso, uma vez na Amazónia, sentiu-se aos doze anos irresistivelmente motivado pela necessidade de aprender a ler e aprendeu depressa. Depois de outras leituras, caiu-lhe casualmente nas mãos o Camões de Almeida Garret, e, daí em diante, desenvolveu-se em si um tão acentuado gosto pela poesia que, ainda antes dos quinze anos, já escrevia versos para ler aos amigos e aos clientes pretos que iam à loja em que ele servia como caixeiro. Depois de andar pela selva e travar espantoso conhecimento com a riqueza humana, botânica e animal naturais da Amazónia, entendeu que não era aí que estava o seu futuro. Escreveu duas cartas a Garrett, em Janeiro e Julho de 1845, recebendo resposta, datada de Outubro do mesmo ano, em que Garrett prometia ajudá-lo se ele viesse para Portugal. Foi o que fez, sem hesitações, em 22 de Março de 1846, embarcando no Pará. Regressado à terra natal, participou na revolta da Maria da Fonte e, quando foi alcançada a paz, em 1847, partiu para a capital.
Já em Lisboa, ao mesmo tempo que servia em modestos empregos de caixeiro, cultivava a poesia e enviava versos para os jornais, tornando-se em breve conhecido como “poeta operário”. A tal ponto se tornou notado que em 6 de Agosto de 1849 lhe foi oferecido um jantar de homenagem, que tem sido chamado Jantar Literário, presidido pelo próprio Almeida Garrett, a que compareceram, entre muitos outros, Alexandre Herculano, Lopes de Mendonça, José Estevão. Note-se que nesta altura Gomes de Amorim tinha apenas 22 anos de idade. O jantar serviu também para que lhe fosse atribuído emprego mais digno, sendo nomeado ajudante de escrivão da pagadoria geral do Ministério da Marinha, com a graduação de tenente da Armada Nacional.
O menino emigrante analfabeto, o voluntarioso autodidacta, o jovem poeta cumpria um trajecto que daí em diante seria vertiginoso. A poesia deixou de lhe bastar e depressa se lançou como dramaturgo, romancista, contista, publicista com larga colaboração na imprensa, incluindo a brasileira, editor de Os Lusíadas, biógrafo de Garrett. O seu nome passou a ser respeitado por todos, a intelectualidade mais destacada de meados do século XIX convivia com Gomes de Amorim, muitos dos nomes eram visitas de sua casa e com ele se correspondiam. Além de Garrett, refiram-se, a título de exemplo, Alexandre Herculano, Rafael Bordalo Pinheiro, Teixeira de Vasconcelos, Rebelo da Silva, Luís Augusto Palmeirim, o francês Ferdinand Dennis, etc. De discípulo de Garrett passou a consultor de jovens praticantes da literatura que lhe pediam conselhos. Como prova de reconhecimento da sua valia, várias instituições de cultura, nacionais e estrangeiras, aceitaram-no como sócio: Academia das Ciências de Lisboa, Instituto de Coimbra, Academia Real das Ciências da Bélgica, Academia Espanhola, Academia Real de História de Madrid, Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brazil, etc...
Como ele próprio escreve no prefácio a O Cedro Vermelho, o autor desta peça «De volta à pátria, não perdeu a memória do formoso país onde passara a idade juvenil». Revela, de facto, uma prodigiosa memória que, por um lado, reteve dos poucos anos que viveu no Brasil e ainda na adolescência, sublinhe-se, uma rica terminologia exótica que viria a utilizar em algumas das obras que tratam de problemas da Amazónia, como acontece em O Cedro Vermelho e Os Selvagens. Além disso, numa surpreendente sensibilidade ambiental, cedo manifesta preocupação pelas implicações ecológicas que vislumbrava naquilo que viu fazer na Amazónia que conheceu, ao mesmo tempo que denunciava o tratamento injusto de que os indios brasileiros e os escravos estavam a ser vítimas, pugnando pela sua emancipação como seres humanos, nomeadamente nas peças de teatro que escreveu e que, em geral, foram levadas à cena.
Não obstante a notoriedade de que gozou, Gomes da Amorim manteve sempre um perfil modesto e uma recordação saudosa da pequenina terra que o tinha visto nascer. Relatou vezes sem conta o seu humilde nascimento e manifestou continuamente uma inconsolável nostalgia em relação aos lugares da sua infância. Essa lembrança de Aver-o-Mar, a que ele chamava Avelomar, está materializada, por exemplo, em As Duas Fiandeiras, no conto As Roseiras do Amor (incluídas na colectânea Frutos de Vário Sabor) e, em parte, em O Amor da Pátria. A acção desenvolve-se pelos diversos lugares da aldeia, que ele nomeia a cada passo, descrevendo muitas vezes os seus traços mais característicos (caminhos, fontes, vegetação, pessoas, apelidos de famílias que ainda hoje existem, etc.)
Ao olhar para a sua volumosa produção, muita dela de apreciável qualidade e muita outra ainda inédita, não deixa de surpreender, desagradavelmente, que Francisco Gomes de Amorim tenha andado tão esquecido. Parece-me imperdoável que isso se verifique entre os poveiros e, muito especialmente, entre as gentes de Aver-o-Mar. Não será tempo de se reeditar as suas obras, pelo menos as mais 'locais', e promover a sua leitura?
Aqui fica a pergunta.
M. Gomes da Torre, Julho de 2007 |